(Micro) Contos - parte II

Segunda parte da seleção de microcontos sensacionais de Carlos Seabra.

Ela recebeu um buquê de rosas. Um espinho perdido tirou-lhe uma gota de sangue, que se escondeu vermelha entre as pétalas.

Ela era negra e ele judeu. Ela era católica e ele ateu. Ele engordou e ela emagreceu.

Sentada no túmulo, como se estivesse num jardim, a jovem viúva lia poemas para o que tão cedo a abandonara.

As borboletas eram tão lindas e coloridas! Pena que não voavam nem viviam, todas espetadas com alfinetes num quadro.

Num momento normal de si mesmo, olhou-se para dentro e descobriu que há muito tempo não se via.

As formigas, em longa fila indiana, indo de um quintal ao outro, eram a única coisa que unia aqueles dois vizinhos.

Os semícaros eram um povo unialado, cada qual com uma única asa. Para voar, tinham que escolher alguém e se abraçar.

O pequeno órfão da rua busca a mãe em qualquer um que lhe estenda a mão e procura o pai em todos os que lhe dão o pão.

A chaleira apitava e a velhinha, já meio surda e gagá, saiu correndo para pegar o trem.

Ele sonhava ser astronauta, nem carta de motorista tirou. Ela queria ser princesa, da favela nunca passou. Quando se conheceram, nada disso importou.

Ajuda ele emprestava a juros. Amor só dava a prazo. Rancor era à vista. A gratidão só recebeu fiado.

O número de loucos é infinito. A demência é universal. Eu mesmo não sou muito normal.

Latidos ao longe, na madrugada, eram a única companhia que ele tinha naquela noite de insônia, na cama gelada.

Sem ninguém para lhe dar corda, numa eterna pose, a bailarina da caixa de música foi envelhecendo, coberta de pó, num canto esquecido de um armário.

O casal de viajantes do tempo brigou feio. Separaram-se. Ela foi para antes de ele nascer; ele para depois de ela morrer.

Ele estudara a Bíblia, o Corão, o Talmude, Confúncio, Buda e Platão. Mas continuava não entendendo bulhufas acerca da paixão.

Plena madrugada, naquele prédio estava sempre acesa a terceira janela. Um doente terminal vivia com intensidae, lendo todos os livros que ainda podia.

Flores murchas ornavam as janelas da velhinha meticulosa. Os vizinhos distraídos e a família ausente demoraram meses para achar seu cadáver na sala.

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